Meu adorado Martim,
À medida que o dia dois de Agosto se aproxima, a minha saudade aumenta. Sendo um ser racional, sei, que da forma como existiu durante vinte e seis anos, já não volta, mas as saudades do seu corpo físico, da sua voz, e sobretudo dos abraços que me dava, do toque e do cheirinho suave da sua pele, são e continuam imensas. Para os comuns dos felizes mortais, o Luto por um Filho é algo de incompreensível, e de “fácil” gestão nos conselhos que querem dar - alguns até impingir - mas para quem sente e sofre na Alma uma perda inenarrável como esta, para quem continua a ser Mãe de um filho que morreu no auge da sua Vida e sem qualquer culpa, para quem a vida foi implodida de um segundo para o outro, a Saudade torna-se uma companheira constante.
Sejamos honestos, é muito difícil (sobre)viver para ver o desenrolar do Futuro enquanto se torna Presente, os seus amigos a casar, os dramas quotidianos a acontecer, os netos dos nossos amigos a nascer, enquanto nós choramos na Terra por quem agora habita no Céu. A pressão da Sociedade é de uma dimensão de tal forma cruel, que inimaginável, e só nós, que fomos forçados a (con)viver com esta mágoa e esta tristeza, conseguimos abarcar o peso da dimensão da mesma. Procuramos formas de mitigar esta dor imensurável, de tornar a passagem neste Tempo e neste Espaço mais suportável, mas NINGUÉM consegue imaginar a quanto custo. Quem tem a sorte de aprender a alegrar-se das pequeníssimas coisas do dia-a-dia, de um quotidiano que mais parece uma existência surreal, consegue (sobre)viver, mas no entanto a nossa Alma transporta em si uma ferida que não tem cura, uma chaga permanente, um sangrar diário, um rasgo rasgado nas e às entranhas como que por bisturi afiado!
Que saudades meu Amor querido, que falta que me faz. Que tanta coisa vivi, sofri e sobrevivi entretanto, nestes quase dois anos, como se de várias existências se tratasse. Acho que os Pais que perdem Filhos vivem num Tempo e num Espaço que não é nem presente (e real), mas (n)um limbo temporal e surreal, irreal na sua magnitude, não presencial nas formas (esotéricas) que encontramos para comunicar.
Não há palavras para descrever a minha dor, nem a minha saudade, e muito menos para contar tudo o que vai na minha cabeça, e cá bem dentro de mim, perto das entranhas que o alimentaram e lhe deram a Vida, a sua, tão breve, e contudo, com tanto significado - PASSAGEM!
Martim…que sonho tão breve, tão maravilhoso que me foi tirado!
E (des)enganem-se os “Outros”, porque não escrevo para vocês: escrevo, em primeiro lugar, para o meu Filho do Céu, aquele Anjo de que o Universo precisava para contrabalançar esta merda toda, e que (in)felizmente foi o meu o Escolhido.
Em segundo lugar escrevo para mim, para conseguir manter as curvas da linha da (in)sanidade, a que é necessária para que os “Outros” se sintam confortáveis em me manter no seu seio, sempre tão regrado pelas conveniências, pelos egoísmos dos vossos desabafos de meras “trivialidades”, que não são nada a comparar com o meu drama! Por muitas dores de cabeça que tenham, os vossos continuam cá. Se é melhor ou pior não me cabe julgar, mas pelo menos conseguem ouvir a sua voz, abraçar o seu corpo e rirem com o sorriso deles.
Eu lembro-me do meu - embora tente todos os dias esquecer - num sofrimento atroz, numa agonia sem definição, ele, no auge da Vida, cheio de sonhos e de planos, e com um rosto imaculado!
Sabem o que me persegue ainda hoje, dois anos depois? Não ter tido a coragem de lhe afagar as mãos, numa cobardia de mãe perante o corpo desfeito do filho. Sim, afaguei-lhe a testa, em doces carícias maternais, leves como a pena de um pássaro, com receio de magoar, ainda mais, aquele corpo martirizado. Aquele inocente que a incúria de um animal resolveu fazer vítima, e que lutou até ao fim.
Beijei-lhe o cabelo, o rosto - já na altura gelado, numa antecipação da morte iminente - fiz-lhe o sinal da cruz e entreguei-o ao Universo, num grito inaudível porque emudecido por tanta dor, num desgosto terrivelmente antecipado, numa mágoa sem precedentes, numa aparvalhação perante o inconcebível e pedi a Deus que o levasse! Que o libertasse dessa agonia e o fizesse Anjo, concedendo-lhe assim, para além da Vida Eterna, a Imortalidade de quem salva os Outros!
E em terceiro escrevo para todos vocês, todos os que são como eu, que, de uma forma ou de outra, seja ela de doença ou de acidente, propositada- ou inusitadamente, se veem no mesmo lugar que o Universo me obrigou a ver. Nós precisamos de VOZ, de termos a coragem e a sabedoria de vomitarmos para o Mundo tudo aquilo que sentimos, para que finalmente a Sociedade aprenda e perceba que, felizmente que não sendo Lobbie - porque em número “reduzido” - somos os Pais de Filhos roubados, de sonhos desfeitos, de Vidas implodidas, transformadas em vidas, às quais procuramos dar o significado da maiùscula a cada dia que passa, mas que são tão raros, que em dois anos se contam pelos dedos de uma mão, e merecemos um tratamento e um respeito social que nos é mais do que devido.
É um tema sensível? É! Mas é forçosamente também um tema social, que - (in)felizmente pelo seu reduzido número - não é político. Mas que deveria ser: A morte de um Filho é pior do que um cancro, porque não tem cura, nem esperança da mesma. Não existe nada depois disso, porque esse Filho não volta. Ele continua a viver dentro de nós, e que, para alguns felizardos e abençoados - nos quais me incluo - se manfesta nas e das mais diversas formas, mas para a maioria é o buraco negro do Infinito da Saudade que e se abre e (n)os engole.
Hoje, na simplicidade deste Campo que me acolheu há tantas Luas, o vizinho bateu-me à porta, para me vender aquele mel único, das abelhas da família, nestas trocas fabulosas que só o campo nos proporciona. Comprei muito mais do que precisava, para agilizar os trocos e honrar um Portugal que ainda teima em existir! E durante a conversa, que mais parecia Vasco Santana a negociar as bolachas Maria e as línguas de gato no “Páteo das Cantigas”, com um frasco de mel numa mão, e a outra a limpar as lágrimas dos olhos, me confessou:
E no olhar deste homem, bem mais velho do que eu e com várias décadas de Luto em cima, lê-se o mesmo Desgosto, a mesma raiva oferecida para colmatar o próprio sentimento, a mesma Mágoa e a mesma Paz que se lê no meu. O meu, onde tudo (d)escreve as Linhas da Saudade!
Meu Filho…é no Luto e pelo Luto que não podemos deixar de Escrever de de Sonhar a Esperança!
Mil beijos da sua Mãe que o adora,
Mami