quinta-feira, 29 de setembro de 2022

29.9.20229 - One Day minus 57 (Ceviche, Burrata e outras iguarias)

 


Meu adorado Filho,

São quatro e meia da manhã e não consigo dormir. 

As imagens da nossa Vida sucedem-se numa cadência interminável. Tentei rezar, mas não me concentro nas palavras do terço, a minha mente voa para um passado (ainda) tão perto e, contudo, tão distante, para um tempo em que eu era feliz. Hoje senti e sinto de tal forma a sua falta, que nem escrever consigo, parece que tudo se afoga neste mar de dor, de tal forma, que nem as palavras me saem. Há dias assim, dias péssimos, dias em que nos sentimos como que presos num bloco de gelo. Estou a ver a imagem à frente dos olhos: é como se estivesse viva, mas presa num icebergue, rodeada de gelo, a ver o Mundo a passar e a mover-se perante os meus olhos, mas sem me conseguir libertar. Solidão e gelo. E lá fora estão os "Outros". Todos eles.

As pessoas que não passam por uma desgraça destas não conseguem entender a sua magnitude, o que é absolutamente normal, afinal requer uma coragem quase sobre-humana (sobre)vivermos a "isto". E "isto" é um deserto ártico. Não sei como e onde vou buscar forças, mas continuo a minha jornada, tal como lhe prometi. Aos poucos, neste Mundo paralelo que agora faz parte da minha vida, você e eu começamos a viver cada vez mais. Falo constantemente consigo, no meu coração, e sei que cá dentro, bem escondido do Mundo "normal", daquilo que os Humanos percepcionam, existe uma nova dimensão. E é nessa dimensão que gosto de estar. É aí que nos encontramos, que conversamos, que lhe conto o que me vai na Alma, que confesso os meus terrores e as minhas vivências. É também aí que partilho as nossas memórias.

O Miguel está com Covid, e eu presumo que também, muito embora continue a testar negativo, mas sinto um cansaço grande e dores de garganta. Aproveitei estes dias para me dedicar às madeiras. Começa a estar frio, pelo que trabalhar muitas horas a lixar no exterior, não é viável, ainda mais com o corpo dorido. Assim sendo, comecei a pintar e a decorar caixas de madeira. Aprendi uma nova técnica: a "découpage". Dá-me imenso gozo fazer isso, e o resultado fica engraçado. Vou fazer algumas lembranças para oferecer. A vantagem, é que posso trabalhar na mesa da cozinha, e não fazer o estardalhaço de pó e de porcaria que acontece quando lixo peças grandes. Também comecei a pintar letras de madeira. O resultado fica muito giro e decorativo. Passo horas do dia a fazer tudo isto, o que me descontrai, porque se assemelha a uma meditação. 

Amanhã, ou hoje, porque é noite alta, o Miguel vai buscar as galinhas para as por na Quinta nova. Finalmente antevê-se um fim para as obras, faltando agora para mim o pior: a mudança. Quando olho para o que está na garagem e tem de ser organizado, limpo e arrumado, só me apetece vomitar, tal são os nervos que sinto, mas depois penso que, enquanto tiver tarefas destas, estou ocupada e dou uma espécie de sentido prático à minha vida. A minha cabeça continua um caos, esqueço-me de tudo, pareço que tenho Alzheimer. O mais difícil é o tempo que demoro a processar a informação, sobretudo quando me fazem perguntas. Vejo que as pessoas ficam à espera das minhas respostas, mas elas demoram. Para os que me conhecem, deve ser muito assustador. Deve não, é, porque reparo na surpresa do seu olhar quando me questionam sobre isto e aquilo, e eu não me consigo articular com a rapidez que seria "normal". Ainda não falei com outros pais em detalhe sobre esta situação, mas pelo que me apercebi, ela é comum. 

Passaram quase dois meses desde o dia dois de Agosto. Parece uma Eternidade, tal a dimensão da saudade que sinto. Cinquenta e sete dias de agonia. O Verão deu lugar ao Outono, e eu mal me apercebi. Em breve, estaremos no Natal. E antes, serão os seus anos. Nem quero pensar no que vai ser. Prometi que irei fazer o Natal, a Oma também, coitadinha, lá vem ela de arrasto, mas vamos fazê-lo. É bom ser já na nova casa, será certamente menos doloroso, se é que se pode falar em mais ou menos, porque é tudo "pior que péssimo", mas pelo menos, numa casa nova não existem memórias. Talvez eu consiga criar recordações novas, depende. Não serão bem memórias novas, porque a minha vida perdeu um dos seus pilares, mas espero conseguir estabelecer uma vivência quotidiana que me permita seguir, tirando alguma gratidão dos dias. Aquela magia que sempre viveu dentro de mim, aquela gratidão por cada manhã em que abria os olhos, essa morreu com a sua partida deste Mundo físico. Tento não dar lugar ao cansaço, mas há dias em que faço um esforço hercúleo para me levantar da cama e seguir em frente. Entendo perfeitamente porque há pessoas que procuram o sobrenatural, e outras que se fecham num quarto escuro e preferem definhar, porque isto não é fácil. 

Hoje quando fomos aos cães apanhei dúzias de Dióspiros. Estão maduros, tão maduros, que muitos caem da árvore. Aproveitei para pendurar um saco deles na porta da Dona Fernanda e outros tantos no portão do Manel. Quando me sentir com forças para voltar à cozinha, tenho de ver se descubro receitas para fazer com este fruto. Mas isso ainda vai demorar, porque a cozinha sempre foi um ponto de grande interação nossa. Lembro-me de quando me ensinou a fazer Ceviche. Do pormenor da cebola roxa, e dos temperos. Você picava cebolas como ninguém. Estou a vê-lo na nossa cozinha minúscula em Campo de Ourique, a cortar legumes e a mexer nos tachos e panelas enquanto bebia um copo de vinho tinto e conversávamos os dois sobre o ponto dos refogados, ou de como cortar o peixe ou os legumes. Lembro-me de me rir quando via como arrumava o frigorífico, tão parecido comigo na sua organização. Lembro-me de si todos os minutos do dia, nesse tal Mundo de que lhe falava há pouco, que agora é um Mundo num patamar diferente.

Eu sei que você me ouve e me entende, me aconchega e me acarinha, mas há momentos em que a falta física do seu abraço me dói como o raio. O tempo vai passar e eu não o vou ver a envelhecer, não vou assistir ao aparecimento dos seus primeiros cabelos brancos, nem das suas rugas. Não vou poder embalar os meus netos nascidos de si, vê-los a dar os primeiros passos rodeados de animais e natureza, nem lhes ensinar os princípios importantes da vida, neste futuro que me foi - literalmente -roubado. E isso DÓI Tim. É uma dor tão forte e tão violenta, de uma magnitude tão grande, que é como se me arrancassem o coração. Ou melhor, é pior, porque se me arrancassem o coração eu morreria, e agora tenho de viver com isto todos os dias até morrer.

É uma morte em vida. Quando morre um filho, perde-se uma parte de nós. É irrecuperável. Não existe consolo, nem fim, ou seja, o Luto por um filho é permanente. E essa permanência é algo inultrapassável, porque é um sofrimento que jamais acaba. É uma tortura. Espero que o Universo me dê forças para aceitar, não "talvez um dia", mas todos os dias. Agora, quando abro os olhos, já não digo: 

- "Que bom, mais um dia que nasce!"

Mas sim:

- "O Universo me dê a força necessária para aceitar mais um dia!"

Ponho Amor em tudo o que faço. Tento que esse Amor que sinto por si, esse Amor universal, passe nos meus gestos, nas minhas atitudes, pois só o Amor tem poder para aliviar este sofrimento. E considero que o Amor tem vindo ao meu encontro. Estou mais próxima de algumas Tias suas, de quem tive muitas saudades, também dalguns primos, e de amigos e outras pessoas, e isso é muito bom. Isso é Amor. 

Se houvesse mais Amor no Mundo, o Mundo seria melhor. Mas nós, os Humanos, só nos apercebemos disso, quando um dos Nossos é chamado. Existe um pouco de Nossa Senhora em cada Mãe De(s)filhada. 

Que Ela me acolha debaixo seu manto de Luz nestas noites escuras de profundo desgosto. 

Beijo enorme Filho lindo!

Mami


domingo, 25 de setembro de 2022

25.9.2022 - One day minus...53? (loosing track of time!)

 




Meu querido, querido Tim, meu adorado Filho,

Estou sentada, pela primeira vez desde o dia dois de Agosto, à minha secretária. Todo esse malfadado dia me vem à memória: seriam umas dez e tal da manhã, quase onze, quando o meu telefone tocou e a minha vida mudou para sempre. Irreversivelmente, numa brutalidade sem limites, sem fronteiras e sem tréguas. Uma mudança pela qual nenhum Ser Humano deveria passar, tal a dimensão ilimitada da dor. 

Sei que você e eu temos o nosso Mundo, e gosto tanto de aqui estar, a conversar consigo, mesmo sentindo o sal das lágrimas sem fim a escorrer até aos cantos da boca. São lágrimas de uma saudade imensa, de uma dor de uma força tal, que me arrasta e me traspõe para um plano tão doloroso, mas tão, tão doloroso, que as palavras não chegam para o descrever. Não há adjectivos suficientes. Em frente aos meus olhos existe uma fotografia nossa, você em pequenino, em Fôja, como sempre abraçados um ao outro, numa moldura que me traz tantas, mas tantas recordações. A moldura, porque a fotografia não é feita de recordações, é um reflexo do nosso Amor, o de ontem, o de hoje e o de amanhã. Amor INFINITO! Sempre me questionei porque é que a tinha colocado aqui, e sempre senti uma certa injustiça perante o facto de ter só esta fotografia na minha secretária e não ter posto também uma com o seu irmão. Já não digo nada, poderá ter sido uma premonição. Ao lado repousa o despertador verde da Oma, que me indica(va) sempre as horas durante o dia de trabalho. Neste momento não consigo trabalhar, o meu cérebro não acompanha. 

O meu trabalho agora são as madeiras, a transformação do velho em algo diferente, irreverente, único. Enquanto trabalho a madeira, para depois a pintar e a encerar com cera de abelha, o meu cérebro, o meu coração e a minha Alma voam até si. São nesses momentos indescritíveis da paz do reencontro do Amor, que me transporto para o Mundo paralelo onde você e eu continuamos. Esse Mundo longínquo, tão nosso, numa "bolha" onde só nós dois cabemos, nessa imensidão que foi, é, e será, para sempre, o nosso Amor! Cada peça que transformo tem uma história, porque encerra mais uma conversa nossa. Vou começar a oferecer algumas àqueles que nos amam. 

Já descobri o estilo de que mais gosto, é o da tinta misturada com água, em pinceladas quase etéreas, suaves, como se de veludo se tratasse, e após colocar a cera de abelha em movimentos doces, parece seda, de tão macia ao toque.

Tim... uma vez mais perdi tudo o que escrevi. Começo a achar que você me prega partidas...certo? :-)

Bom, não vou tentar reconstruir o que lhe disse, não faz sentido. 

Lembro-me de quando lhe ofereci esta toalha de praia e você dizer:

- "Eh pá Mãe, adoro, top Mãe, Épico Mãe," (seguindo-se mais um palavrão, que uma vez mais vou omitir para preservar a sua memória), e de eu lhe responder:

- "Assim ninguém a confunde, é só sua!"

Tim, meu Tim, meu Filho adorado, não consegui ainda lavar esta toalha. Encerra em si a plenitude do cheiro a maresia e - espero - a felicidade tão efémera que você viveu. 

Você sabe que eu escrevo da Alma, e do coração e não consigo reproduzir o que me saiu há pouco e que se foi. 

Sei que nos encontramos num patamar, num hiato de tempo sem tempo, naquela ombreira intransponível de Luz, onde somos unos, e nos conseguimos alcançar.  E é nessa ombreira que quero permanecer, porque é fronteira entre dois Mundos. Os nossos. Esta madrugada sonhei consigo, pela primeira vez, sem o pavor de o perder. Foi...

...épico...!

Tim, eu envelheci cem anos. Tenho uma Vida antes e uma vida depois, tenho muitas décadas a mais, após isto tudo. Tenho um Mundo só nosso, onde nos encontramos para falarmos, partilharmos e vivenciarmos tudo o que foi o nosso Amor. É nessa ombreira, nesse hiato de tempo sem tempo, porque não existe tempo entre nós, que paro, que penso e que nos VIVO! Sinto-me só, tão abandonada e incompreendida nesta minha dor, nesta imensidão intransponível de sofrimento, que não sei como vou continuar. Mas sei que só há uma forma:

A do AMOR!

"Mais Amor por Favor!"

Tim, você e eu partilhamos neste espaço sideral, esta imensidão do Amor, esta sensação indescritível de pertença, de chegar a casa. Não sei como vou continuar a minha jornada, ela é penosa, repleta de espinhos que me ferem a carne e dilaceram a Alma a todo o instante, e sobretudo, é uma caminhada solitária. Mas é minha. É um abismo intransponível, mas acredito que aos poucos, iremos conseguir construir a ponte entre as margens, mesmo que seja numa dimensão que mais ninguém consegue entender.

E esta dor constante, permanente e perpétua, pungente e avassaladora, esta sensação de abandono, de perda sinistra, que só se colmata quando afago a madeira e depois lhe decido escrever mais uma carta, desaparecem por momentos. Ou melhor, suavizam-se.

Tim, meu Filho adorado,

meu adorado Filho,

não sei como vou conseguir. Mas prometo que estou aqui, de corpo às balas. 

Tenho TANTAS, TANTAS, TANTAS saudades suas meu Filho querido!

Tim...

Envie Amor por favor!

Mais AMOR!

Da sua Mãe que o adora,

Mami



sexta-feira, 23 de setembro de 2022

22.9.2022 - One Day minus 50...(aos poucos...)

 


Bicho do meu coração,

Têm sido dias intensos, e por isso, não tenho vindo aqui para as nossas conversas. Mas fui à Capelinha do Espírito Santo. 

Ontem e hoje foram dias bons. E quando digo "bons", é porque você vive em mim, e faz parte constante do meu pensamento, foram dias em que pensei em si com saudade imensa, mas com menos "mágoa". É como se o desespero da saudade tivesse dado lugar a uma saudade mais "doce". Não é fácil de explicar, contudo, sei que você entende o que o meu coração quer dizer. Foram dias de uma saudade como que pacificada.

E isto é um avanço. Continuo e não ter vontade de estar muito tempo no meio de pessoas. Cansa-me, e, além disso, os meus pensamentos voam muitas vezes para ao pé de si, o que significa que estou como que ausente, as pessoas apercebem-se, e é chato.

Ontem fomos ao Baleal. O Jorge e a Teresa prepararam-nos um almoço de peixinho no forno, uma delícia, e foi muito bom estar com pessoas que me acarinham muito e me fazem sentir "em casa". E finalmente estive com os pés no mar. Não deu para entrar nas ondas, porque me esqueci do fato-de-banho, mas andei descalça na areia da praia, e salpiquei-me de água salgada. Estava quente! Fim de tarde de sonho. Ouvir o bater das ondas, sentir a maresia, e perder-me naquela imensidão, trouxe-me tranquilidade. Falei consigo, claro, muitas vezes e por muito tempo. Cheguei cansada, mas, como já lhe disse acima, com um sentimento de saudade apaziguada que me serenou o coração e me secou as lágrimas. Ora sempre que estas secam, nem que seja por um dia, é porque esse dia foi um dia que mereceu ser vivido. Óbvio que não posso dizer "vivido na sua plenitude", porque os dias passaram a ser incompletos, mas se a minha vida de agora em diante for assim, é menos doloroso.

Hoje andámos na obra. Tudo começa a ganhar forma, antevê-se um final, e isso é gratificante. Amanhã vou para lá logo pela fresca, com o canalizador, o pedreiro e o pintor.  Há muitas coisas para fazer e para coordenar, mas eu adoro, e você sabe disso. Tenho posto muito amor naquela casa, muita dedicação. E ela merece. A Buganvília que o Miguel plantou no calor tórrido do Verão, já pegou. Começou por dar uma tímida flor, desde segunda-feira até hoje, já tem cinco. Cinco flores branquinhas, lindas, Vida a desabrochar.  A roseira deu à luz o primeiro botão. Também já pegou. O Miguel tem muito jeito para plantas e tudo o que tem a ver com a terra. Tudo medra nas mãos dele, o verdadeiro toque de Midas. Ao contrário de mim, como sabe, que de jardineira tenho pouco. Só faço asneiras e as plantas secam como se estivessem no Sahara.

A dedicação e a energia que a casa me tem pedido, têm sido uma tábua de salvação. Fui eu quem lixou as portadas e as janelas. Enquanto as mãos trabalham e criam, a Alma pacifica. É a melhor terapia que se pode encontrar.

Tim, se você cá estivesse agora, iria gostar. São as Festas do Concelho e a Vila está muito bonita. Toda enfeitada de verde e branco, com tasquinhas, mostras de sabores e artefactos, quermesse - sim, também contribuí com alguns cangalhos e outras quinquilharias, como não poderia deixar de ser - e música ao vivo. É bonito de se ver e de se sentir o frenesim nas ruas. Temos um arraial literalmente à porta de casa. É barulhento, claro e dá uma trabalheira controlar a Foxie, que mal se abre a porta da rua, se esgueira pela calada para ir surripiar ossos e outros restos de iguarias típicas, aproveitando o facto de a Dona Fernanda estar a descascar batatas na cozinha. A Dona Fernanda está no céu. Todos os dias põe um avental novo, e veste-se de acordo com os quadradinhos ou as flores de cada um. Do alto dos seus oitenta e um anos, esteve na festa até às três da manhã a ajudar na cozinha e a meter a rapaziada na ordem. 

O Mundo gira. Muito mais devagar, mas gira.

Começo, portanto, a habituar-me à minha nova vida, a uma vida sem si. Penso que tive muita sorte - se é que se poderá dizer isto assim - porque o seu Amor e o seu exemplo de Vida passaram para mim com a sua morte. Nunca deixei a mágoa ou a raiva entrarem no meu coração, porque sempre soube que se o fizesse, a minha vida iria ser um inferno muito pior. Teria ficado presa a esses sentimentos tão negativos, e nunca conseguiria andar para a frente. E eu não poderia querer isso, tendo o privilégio de ser sua Mãe. 

Esta nova fase, que aos poucos começa a fazer parte do meu luto, tem-me ensinado muita coisa. Ah Tim, tenho ou não razão? Sinto a cada dia que passa, que você toma cada vez mais conta de mim. Que me abraça, me senta no seu regaço de Luz para me acalmar as lágrimas, me consola e me dá coragem. Ao mesmo tempo sinto-o mais longe, conquanto cada vez mais perto. Esta sensação paradoxal não é fácil de trocar por miúdos, mas eu vou tentar, muito embora pense que você percebe lindamente o que lhe quero transmitir: à medida que a minha dor se apazigua um pouco mais, eu deixo de o chamar, naquele desespero devorador, que muitas vezes ainda me atormenta e me suga para o seu vórtice negro. E de cada vez que eu consigo escapar por mais tempo a esse buraco de escuridão, eu vou para mais perto de si, embora num plano e numa dimensão diferentes. Entende? Eu sabia Filho querido, é claro como a água: à medida que você se solta um pouco mais e sobe, porque eu não o estou a querer ou a tentar prender, eu estou mais perto de si.

Talvez os Psicólogos tenham um termo para esta fase, para este sentimento. Eu não o prendo, você sobe, e, contudo, sinto-nos cada vez mais perto, nos braços um do outro, conquanto num patamar mais "puro", e por isso, muito, mas muito mais intenso.

Você aproxima-se cada vez mais do centro do Céu, e eu sinto-o cada vez mais perto, porque estou apaziguada! Simples!

Que Epifania Tim! Obrigada, meu Filho lindo! Adoro-te meu Amor querido!

Meu Tim :-)

Um beijo imenso neste Outono que começa,

Mami





terça-feira, 20 de setembro de 2022

19.9.2022 - One Day minus 47...(Pormenores ou Por maiores?)

 




Meu adorado Filho,

Começou a semana e o meu cérebro voltou a assemelhar-se um pouco mais ao que costuma ser. Não com ao que costumava ser, porque parece que tive um AVC dia dois de Agosto: articular os pensamentos, palavras e ideias, requer um esforço hercúleo. E vou-lhe dar um exemplo anedótico.

Fizemos oitenta quilómetros para ir ao Leroy comprar o exaustor e os interruptores, porque o eletricista, aquele ser surreal sobre quem lhe contei, resolveu misturar os interruptores da Quinta, tal qual uma salada de massa tricolor. Ir a Torres é um "happening": um edifício de betão com vinte lojas, e achamos que estamos no Colombo. Somos teletransportados para uma memória de civilização consumista - Nirvana do gasto desnecessário, Shangri-La dos impulsos desenfreados, que não servem para nada depois de comprados - mas da qual, de vez em quando, também precisamos. Ou seja, deixámos o dever para trás, e fomos ao Leroy por último. O resultado foi lindo: mal chegados à obra, reparámos que os interruptores estavam comprados, mas que nos tínhamos esquecido do principal: o exaustor!!!! 

Mas não faz mal, tenho um pretexto para mais uma tarefa que me vai ocupar, e manter semi-vivos, o Tico e o Teco, que agora serram, alternadamente, os meus miolos. Com meia hora de descanso entre eles, subentenda-se!

Sabe Tim, hoje enquanto regressávamos, o Miguel e eu estivemos a conversar sobre o passado (recente). E eu cheguei à conclusão de um facto? muito curioso. Algo que me faz imensa confusão. Até ao dia da sua morte, eu sentia o passado da minha vida como meu. Algumas memórias estavam mais longínquas, obviamente, mas era uma Vida cujas recordações eu ainda conseguia traçar até à Casa Partida. Nunca me senti com a minha idade e você brincava imenso com isso, e eu dizia que tinha parado aos quarenta, e agora, se eu lhe dissesse com que idade me sinto, acho que você iria começar a rir e diria:

- "A Mãe tá doida. Ó Mãe, a Mãe não existe! A sério!" (seguido de mais um palavrão que opto de novo por não escrever, com o intuito de preservar, uma vez mais, a sua memória imaculada!).

Eu tenho neste momento, quarenta e nove dias depois da sua morte, mais de cem anos. Eu tenho, ou eu tive?, duas vidas. Tive uma Vida e tenho agora outra vida. Eu fui um Ser Humano. Com Angústias, Alegrias, Tristezas e Esperanças, mas sempre com uma garra e uma crença inabaláveis na Vida. Um motor de energia, que levava a minha família para a frente, de corpo às balas e de coração submerso na emoção da crença na felicidade do presente e na do amanhã. Eu hoje sou um resquício dessa pessoa, uma sombra, uma memória estranha, uma aberração, porque me parece que de outro alguém que não eu: quando olho para "ela", para essa pessoa, ou seja, para o meu âmago, eu não reconheço o que observo. Mas o mais pungente, o mais estranho, o mais terrível, é que essa pessoa viveu sete meses e dois dias de uma Vida normal no ano de dois mil e vinte e dois. Mas quando foi esse ano? Há séculos perdidos no pó do tempo e nas teias de aranha da memória? 

Tim, aqui entre nós que ninguém nos ouve, eu devo ter enlouquecido. Eu escrevo e articulo os meus pensamentos de uma forma totalmente lógica, mas a essência dos mesmos é totalmente insana. Será que a minha cabeça se distancia propositadamente dessa Vida passada, normal e tão feliz, para me defender? É disso que tenho medo. De me esquecer de algum dos pormenores de uma Vida por maioritariamente como Mãe de dois Seres únicos. Pormenores? Errado. Por maiores, porque se trata de todos os segundos dessa Vida! Isso é que apavora. 

Mais um tema para falar com a psicóloga. Estarei à beira da loucura, e será o distanciamento temporal uma defesa, uma derradeira barreira consciente para evitar a queda nesse precipício? Ou será que para uma Mãe que perde um Filho, o Mundo sofre uma paragem, num retrocesso no futuro de um salto quântico, que a transporta para uma eterna e precoce velhice moribunda?

Sinceramente não tenho resposta, meu querido Filho. 

Sei que a Vida, como a conheci desde que me lembro que nasci, não é a mesma, nem o será nunca mais. Tento manter-me à tona. Nadar contra a corrente que me quer engolir. Também sei que você me lança, todos os momentos em que me sinto assim, a boia. Amarela ;-), mas isso é tema para outro dia, as pulseiras. 

Tim...continuo a não conseguir abarcar a dimensão desta saudade. 

O José Eduardo Rebelo escreveu no livro: "O Luto: Vivências, Superação e Apoio", que para uma Mãe, pela própria natureza da gestação e do elo que se estabelece desde o minuto zero, a morte de um Filho é semelhante a uma amputação de uma parte vital de si. Como que uma morte em vida. Talvez seja isso que explica a minha esquizofrenia temporal, esta dissociação no espaço e no tempo, esta coexistência antagónica, paradoxal e incrivelmente dura, do que fui e do que sou:

"I was a stranger, in my own skin. Seven Layers, I've been hiding in"... (Dotan, claro!)

Está decidido, vou criar uma playlist com o nome de...

..."ÉPICO"!

Saudades suas, Filho do meu coração!

Da sua Mãe que o adora,

Mami

P.S. Lembra-se desta porta em Barça e de como achei a ideia genial? Mal sabia eu!


domingo, 18 de setembro de 2022

18.9.2022 - One Day minus 46 - Dúvidas

 



Meu adorado Filho,

Cheguei a casa! Foram dois dias intensos em Lisboa e quero contar-lhe sobre isso. 

Fui à Psicóloga. Uma pessoa querida, simpática e calma. Foi bom porque falei sem (quase) parar, chorei, zanguei-me (segundo ela, e provavelmente tem razão!), e confessei-lhe as minhas dúvidas sobre a minha sanidade mental. Saí de lá com a ideia de que afinal estou mais sã do que pensava. O que já não se pode dizer que seja mau.

Depois fui almoçar à Oma. Foi óptimo. Achei-a triste, muito triste, e sem a força de continuar este caminho, mas lá lhe li o Responso, e disse que é para seguir, porque é muito precisa cá. Por todas as razões e mais uma. Portanto, nada de desistir!

À Tarde, fui ter com "as Mães", o meu grande propósito de ir a Lisboa. E foi tão bom Tim, tão bom, que não há palavras. Fomos ao "Lost In" e naquela esplanada aconteceu Magia. A Magia do Amor, da Saudade, da Paz e da Partilha. Sobretudo da Partilha. Éramos três, e você conhecia o filho de uma Delas, e tinha estado em Barcelona com um dos filhos da Outra; como não poderia deixar de ser. Aliás, muito me admiraria se assim não fosse. Acredito que enquanto nós, cá em baixo, partilhávamos água com gás e limão, memórias, vivências, desgostos e anseios, vocês, aí em cima, bebiam uns daqueles seus cafés únicos de Barista, cheios de espuma de leite, e em cada um deles desenhava-se o "M" de Mãe, polvilhado com canela, como eu tanto gosto.

Foi bom Tim. Foi bom estar com outras "Defilhadas", embora eu goste mais do termo escrito com "S", ou seja, "Desfilhadas", porque, como já lhe contei, me faz lembrar as flores sem pétalas - ergo - sem vida, sem objectivo, sem "beleza". Enfim, como se escreve não interessa. Importante é o que se sente. E sabe Tim, na pior coisa que pode acontecer a um Ser Humano em Vida, encontrar outras Mães e outros Pais na mesma situação, dá-nos uma sensação de partilha. A sua Omi costumava dizer: "Geteilte Sorge ist halbe Sorge", e é verdade. Quando partilhamos os desgostos ou preocupações com outros, eles dividem-se. E com isso, cada pessoa tem de acarretar com menos peso.

Saber que há outros como nós, ajuda. Porque uma coisa tem de ser dita. Ou melhor, escrita: Quando morre um Filho, existe uma Vida antes e uma vida depois, embora essa vida, mesmo que com minúscula, seja um eufemismo para este calvário. 

Há momentos, como agora, em que chego a casa e olho para o seu Altar, ou para as suas fotografias e ainda me custa a crer que nunca mais o vou ver ou abraçar. 

Existe uma questão que não deixa de me inquietar o espírito: Há Mães que perderam os seus filhos há mais de vinte anos. Não lhes quis perguntar isto, com receio de as colocar perante uma questão difícil e dolorosa, mas a minha pergunta seria: 

- "Como é que vocês vêem agora os vossos Filhos quando pensam neles: como as crianças/adolescentes/jovens que eram, ou como seriam (ou são?) agora?" 

Acho que é uma pergunta pertinente, e se faz favor lembre-me de perguntar isso à Psicóloga, porque é de primordial importância. É semelhante à questão: "Eu tive dois Filhos" ou "eu tenho dois Filhos"? Todos os Pais com quem falei, partilham do mesmo tempo verbal: TENHO. Porque um Filho nunca morre para nós. Mas isso pode denotar muita coisa no que diz respeito ao estado de espírito, e consequentemente, à nossa sanidade mental. Eu falo de si no presente quando me refiro ao MEU FILHO MAIS VELHO, e no passado, quando relato episódios seus. Mas a diferença é abissal, porque os episódios aconteceram, e assim sendo, estão no passado, mas você ser o meu Filho mais velho, é um facto, traduzido no Presente do Indicativo. Eu não "fui" sua Mãe, eu SOU sua Mãe, e, embora você me tenha sido roubado, continua a ser meu. Nunca deixarei de ser a sua Mãe. Sou a Mãe de um Filho que morreu. Mas a sua morte não acarreta a inexistência de um facto que foi, é, e será, até eu morrer, metade da minha razão de viver...

...Bom, acho melhor parar de filosofar, senão é que me internam mesmo num colete de forças. 

Segui para a Oma, e jantámos com o seu irmão. Gostei tanto de o ver! Está com uma pele fantástica, um cabelo curto, de um loiro muito escuro, e os olhos muito azuis, tão expressivos na sua emoção! Eu fiquei no seu lugar, propositadamente, e empanturrámo-nos de Sushi. E falámos, falámos, falámos.

Depois o Mano foi "angariado" pela Oma para a pôr up-tp-date acerca das tecnologias: levou-lhe o computador dele, instalou as tretas todas, e sincronizou mais mil e um gadgets, não sem antes explicar duzentas e trinta e cinco vezes, a metodologia e os procedimentos a respeitar, para se desfrutar de uma sessão televisiva.

Ontem, porque são três e meia da manhã de dia 18, acordei tarde e estive à conversa com a Oma até depois do meio-dia. Almocei com o meu "Manito" num sítio do qual não me lembro o nome, porque também não é importante, mas foi à beira-rio, e pouco depois segui para a Estação do Oriente.

No comboio, vim a ler o livro sobre o Luto, consigo ao meu lado. Ou terá sido em mim? À minha volta? Não consigo precisar, sei que deixei as lágrimas correr, perante o olhar incrédulo dos outros passageiros, mas para isso estou-me a borrifar desde o dia dois de Agosto deste maldito ano!

Há um Antes e há um Depois. Há uma Vida e há uma (sobre)vivência. Há a Plenitude, e há a limitação. Há Vida e há a morte, a Esperança e o desespero, a Paz e a inquietude...mas também há:

O Amor e há...

... O AMOR!

(Amo-te Filho Lindo!)

Beijo da sua Mãe que o adora,

Mami!

P.S. Como diz outro Defilhado de quem gosto muito, muito, muito: "Ajuda a pousar os cristais da dor!"

(Café tirado por si no Arts a 25/08/2018)


quarta-feira, 14 de setembro de 2022

14.9.2022- One Day minus 42 (Rainbow)

 


Meu querido, querido Filho,

Hoje envio-lhe um arco-íris, aqui ainda muito suave, que captei com o telefone, encharcada até aos ossos. Choveu como se não houvesse amanhã (e não há!), e foi um dia para esquecer. Às vezes pergunto-me porque é que as pessoas querem fazer aquilo que não sabem, ou que ninguém lhes pediu. Passei-me com o pedreiro. Ainda bem que não assistiu, já o estou a ouvir:

- "Mãe, calma, calma Mãe, não faça uma cena, eles coitados não sabem!"

Concordo, eu também não sei a maior parte das coisas, por isso não me atrevo no mundo dos números. Só sai borrada. Acredito até que já me enganei no número dos dias. Mas isso também não tem qualquer importância, o dia ZERO da minha existência é o que conta, porque a partir daí, toda a minha vida mudou. Tudo mudou. 

Confesso que é bom estar irritada com outras coisas, imprime um toque de "normalidade" ao aberrante. E, aqui (me) exponho, parece-me que afinal ainda há alguma parte viva em mim. Enquanto conseguir ficar irritada com os disparates do pedreiro, é sinal de que andamos para a frente. 

Mas depois chega a noite, e o silêncio, e começam as nossas conversas e eu olho para o meu centro, e pergunto-me como é possível irritar-me com o trabalho do pedreiro. Provavelmente o meu cérebro aproveitou a deixa, o acontecimento, o "set-back", para iniciar um motim. O motim das emoções. A revolta na província. A anarquia (organizada) dos procrastinados do destino. 

Tim, quando olho para as fotografias, para o nosso passado tão presente e (para sempre!) futuro, porque quem é recordado nunca morre para nós, não entendo, não aceito e não interiorizo. Não consigo. É demasiadamente brutal. Que falta que sinto sua, querido Filho, sempre tão positivo, sempre tão amigo, sempre tão generoso.

Você tem que entender uma coisa: a "obra" é uma homenagem, um trabalho, uma recordação dos sonhos que nasceram dos nossos sonhos, visualizados criativamente, no nosso "make it happen!". Lembro-me da sua alegria, e da sua satisfação, perante o facto de irmos ter máquina de lavar loiça e de espaço exterior onde grelhar peixe, jogar Cavalos, King e Póker, Canasta ou Sueca, ou simplesmente relaxar. Lembro-me dessas conversas. Lembro-me de tudo, desde que você saiu da minha barriga. 

Filho, recordo-me de cada segundo partilhado, como se de uma oração se tratasse, e rezo, de olhos postos no infinito, mas o milagre não chega. Não há como.

Ou talvez haja...é transformar isto no Milagre do Amor. 

Vou tentar Tim, prometo.

Até lá, fica o Arco-Íris. A ponte entre o "aqui" e o "aí".

Tim...fazes-me tanta, tanta, mas tanta falta!

Beijos da Mãe que o adora!

Mami


terça-feira, 13 de setembro de 2022

13.9.2022 - One Day minus 41...(blessed)

 




Tim...perdi tudo o que tinha escrito até agora. Não sei o que fiz ao teclado, mas acredito que foi você quem fez das suas! Uma hora e meia de escrita, mas o importante, foi que você a leu antes de ir para o "boda" como diz o Mano.

Certo? 

És tramado, Miúdo do meu coração.

Não vou escrever de novo, já leu, disso estou certa.

Fica para nós...

Entre nós e em nós...

...foi um dia "bom"!

...Já sabe porquê. Há trabalho a fazer, tarefas a cumprir e um propósito nesta desgraça toda. Um sentido com sentido! Vamos a isso!

Adoro-te meu Filho lindo!

Mami

P.S. Recuperei esta sua camisa, a Dona Fernanda, do alto dos seus 82 anos, coseu-a. Perguntei-lhe como tinha sido possível. Sabe o que me respondeu?

- "É um milagre, o tecido estava todo esgaçado, deu-me cá uma trabalheira!"

- "Dona Fernanda, quanto é que lhe devo?"

- "Nada. Foi uma prece. Pela Alma desse seu Filho tão lindo e tão amigo da Mãe dele. Deu-me muito gosto, uma prece para o Céu, onde ele está agora!"

:-)

(Vou levá-la vestida quando for a Lisboa, para a consulta com a Psicóloga.)


segunda-feira, 12 de setembro de 2022

12.9.2022 - One Day minus 40...(Está a chover!)

 




Tim...

...mais um dia...

...Está a chover!

A primeira água que cai do céu, desde o início do Verão. Curiosamente não cheira a terra molhada, não há frescura nesta promessa de Outono, ou então não invade os meus sentidos. Devem estar adormecidos. Ou melhor, anestesiados. 

O tempo passa, e os interessados são, de dia para dia, em menor número. É normal, a Vida das pessoas continua, e não se compadece com o nosso compasso de espera, stacatto andante, "Mundo" desconectado do mundo dos dias. O nosso Mundo é o da Eternidade.

Aos poucos, estas nossas cartas assumem uma importância primordial: é normal os outros o relegarem para segundo plano, confesso que faria o mesmo. Como escrevi acima, a Vida dos "Outros" continua. 

Mas eu não consigo: sou sua Mãe! 

Acho que isto explica tudo. Para mim você continua presente a todas as horas, todos os minutos, todos os segundos do dia. Os dias começam a "perder" horas, anoitece cada vez mais cedo, e escrever-lhe, traz-me Luz. É aqui, neste vazio tão cheio de (ciber)espaço, que estamos juntos, que as nossas conversas continuam, que existe um resquício de cordão umbilical universal que nos liga. 

É aqui que as memórias me invadem. Lembrei-me da história dos ténis cinzentos, a que lhe prometi há umas cartas. Esse dia foi memorável. Nunca tive tanto prazer, tanto gosto, tanta alegria, em desbravar vintage second hand shops na minha vida. Nisso você era igual a mim. 

Nisso, e em tantas outras coisas. "Batemos" todas as lojas de Barça, género escuteiros da moda revival, e divertimo-nos como só nós sabíamos fazer. Fomos o sangue azul da moda em segunda mão: reis, príncipes, duques e Cinderelas, sobretudo Cinderelas, aka, Gatas Borralheiras, porque encontrámos tantas pechinchas. Aliás, nunca conheci um ser humano do sexo masculino, que tivesse tanto prazer (e gosto) em andar às compras. Ainda me lembro das suas videochamadas nos Outlets, quando me comprou a carteira da Coach. E o porta-moedas da Oma. O bom gosto educa-se. E o seu era atávico. 

Ainda me recordo da nossa entrada na Cartier, eu a morrer de vergonha, você, com aquele ar de príncipe e porte de rei, na maior das descontrações. O que é facto é que alguns anos depois, e recordando tudo aquilo me ensinou, entrei com porte de Sissi em Viena, e ainda tenho o fio dessa pulseira atado no punho esquerdo. 

Lembro-me das t-shirts que lhe comprámos há SÉCULOS, e que ainda hoje o seu irmão as tem na gaveta, impecáveis. Foram caríssimas, mas duraram mais de dez anos. Dez? Hmmm. estou a ficar ginja, acho que pelo menos quinze.

Tim, encerro em mim um Mundo de recordações, de memórias melancólicas, suaves, fortes e doces, como o seu abraço. 

Encerro em mim o Amor, aquele que tenho por si a cada segundo em que inspiro e expiro, data expirada, mas não menos válida, do meu amor de Mãe. 

Tim...memória tão breve e tão efémera, e, conquanto, tão eterna, permanente e transcendental, do nosso tempo juntos. Vinte e seis anos, oito meses e uns dias, tempo tão curto e tão pleno, tão cheio de recordações, que me enche o resto da vida, desta vez, e propositadamente, com minúscula, porque é de tudo isso que se trata.

Quanto tempo dura um Luto de Mãe? Ah, cada um e todos sabem, ouvimos e respeitamos as opiniões, aceitamos as boas-intenções, mas só nós dois sabemos, que é um luto sem fim. Sem fim!

A cada segundo que vivo, você está presente, nesta solidão de sentimentos, neste deserto de Amor roubado, e não existem oásis que amenizem esta sede. 

...Tim...

O tempo passa, e as saudades aumentam. E a chuva assemelha-se às minhas lágrimas, que caiem livremente, numa tempestade perfeita que assola a minha Alma, enquanto uma trovoada se desencadeia no meu coração, numa intempérie de emoções.

...Tim...

Como é que é possível?

Como?

Meu Filho adorado, não há respostas, neste silêncio tempestuoso, ou nesta tempestade de silêncio.

Apenas...

...SAUDADE!

Mil beijos,

Mami

sábado, 10 de setembro de 2022

10.9.2022 - One Day minus... 38 ("como é Bezerro?")




Tim...meu adorado Tim,

Caramba Filho!

Isto dói tanto, mas tanto, tanto e tanto, que não há palavras. Não existem. É sobretudo quando se instala o silêncio da noite, que o sinto mais. Neste (desas)sossego, nesta calmaria, neste vazio. Lembro-me de si a falar com os seus amigos:

- "Como é Bezerro?"- ou então o célebre:

- "Como é Brother?"

"Have Mercy on me", mas não existe misericórdia. Apenas dor. A que tento transformar em Amor. 

"I'm scared to be lonely, the pain of darkness surrounds me, I see the Light in you."

Ah caramba Tim. Não dá, não é negociável. Não é mesmo. Como é possível que o meu, o MEU Filho mais velho já cá não esteja? Como é possível que essa Alegria, essa ânsia de Vida, essa magnitude de Ser Humano, estejam calados para sempre? 

Como vou continuar sem si? Não sei.

Tim, caramba, isto é demais. É apenas e simplesmente DEMAIS!

Quando estou embrenhada nos dias das tintas, do pó, da lixa e da terra, parece que só está longe. "Só" está longe. Mas depois eu acordo para a cruel realidade de que a sua voz (meramente) ecoa nas minhas memórias, nas minhas entranhas, nas nossas conversas imaginárias, no nosso Universo transcendental, naquele espaço sideral, de onde não quero sair nunca mais, para não "perder" nem mais um bocadinho de si. 

Tim, tenho tantas, mas tantas, tantas saudades! Como é possível Tim?

Eu sei que o Cosmos nos liga, mas o Cosmos está longe para caraças, e nem sempre o conseguimos sentir. Fui à Capela do Espírito Santo hoje e acendi mais uma vela. (E juro que paguei os cinquenta cêntimos!) Sentei-me no degrau do altar e conversámos. Eu gosto sempre de conversar ali consigo. E já percebi, e estou a repetir-me - como diz o Miguel, estou a ficar ginja - que você gosta desse sítio para conversar comigo.

Mas Tim, agora que os dias ficam mais pequeninos, que o sol se põe cada vez mais cedo, eu pergunto-me: como vou sobreviver? Como será possível encontrar a paz no vazio? 

A maior crueldade, é que o Mundo continua a girar. 

E, contudo, eu sinto GRATIDÃO. 

Por tanta coisa. Sobretudo, por ter tido o privilégio de ter sido sua Mãe. E é essa Gratidão, todo esse sentimento transcendente, transbordante e universal, que me liga ao Cosmos. Que me liga a si. Que me envolve, me transporta e acarreta para um momento de Esperança. Quero dar um novo sentido à minha vida, às nossas vidas, gostaria que a minha passagem trouxesse algum sentido, consentido, com sentido, com um propósito, para toda esta tragédia. Ainda não sei qual é, nem qual vai ser. Ainda não sei.

O que sei, é que a sua morte, a sua ausência física, a sua não-tangibilidade, me é uma mágoa de tal modo dolorosa, de tal forma brutal, de tal forma bestialmente dura, que não sei, uma vez mais, por onde entrar no labirinto. 

Filho, não sei. Não sei mesmo. Continuo sem encontrar a porta de entrada!

Ela está lá. 

A Porta. 

Sinto-a, pressinto-a, e com isso, quase que se torna tangível. Mas (ainda) está longe! A Vida continua, no seu continuum temporal. Um perpetuum mobile, sem dó nem piedade, que nos obriga a andar para a frente, sempre em movimento, sem qualquer compaixão para este novo estado!

...Tim...

Sangue do meu sangue, carne da minha carne, crisálida, borboleta, aurélia da minha existência, meu Filho adorado, minha Saudade, meu...

...TIM!...

(Saudades Tim!)

Mami



sexta-feira, 9 de setembro de 2022

9.9.2022 - One Day minus 37 (Descalça)

 



Meu Filho adorado,

Mais um dia que chega quase ao fim. Mais um dia sem si. Mais muitas horas, aliás, "as horas", aquelas Meninas sem quartos, da adivinha que o Mano nos colocou, há tanto tempo que parece uma Eternidade.

"Vinte e quatro Meninas fechadas num quarto, todas têm meias, nenhuma tem sapatos." E, contudo, lá andam elas, Carmelitas descalças com calos nos pés, de se moverem a um ritmo constante, entoando, baixinho, uma prece.

Eu sei o que peço todos os dias, lá isso sei eu. Às vezes é baixinho, outras mais alto, até aos berros, mas deparo-me sempre com a mudez, ou a surdez do Universo. Ou talvez não. Ele (o Universo), tem-me murmurado algumas coisas. Ok, confesso, posso estar - e o mais provável é isso mesmo - em negação; mas o que é facto é que, a cada dia que pego na tinta, no pincel e na lixa, ou decido revolver a terra, projecto uma semente. De quê? Não sei. Provavelmente de Amor. O nosso, tão nosso, que me mantém viva. 

Não há carta que lhe escreva (excepto a sétima :-)!) que não me faça chorar. Mas as lágrimas ajudam. Lavam a mágoa, o sentimento de vida roubada, de injustiça. 

Às vezes tenho medo, pavor, pânico, que o tempo me leve os contornos nítidos das memórias, as partilhas dos momentos plenos de magia, numa erosão injusta, ditada pelo egoísmo da defesa. Quando sinto isso, ponho de lado e entrego para cima. Para o Universo. É também quando lhe escrevo, que o sinto tão próximo. 

Ainda me lembro de quando o senti mexer pela primeira vez na minha barriga. Estava na S&L, depois do almoço, e parecia que uma borboleta tinha nascido dentro de mim. Sentia as asas, tímidas, pequeninas ainda, a esvoaçar por dentro, muito ao de leve. Foi aí que interiorizei que iria ser mãe, em toda a plenitude da palavra. E a Alegria que isso acarreta! Hoje sinto a sua partida bem no centro do meu coração. É um punhal cravado nas minhas entranhas, que mexe e que rasga, que dilacera, arranca, tal qual tenaz invisível, uma das razões de ser da minha existência. 

Como escrevia hoje ao João, que me apresentou o adjectivo pela primeira vez, pertenço a uma nova condição. A da mãe que perdeu um Filho. Mais uma "Desfilhada". 

Só espero, e acredito, Valha-me Deus, que vocês todos foram chamados para fazerem parte de um Universo maior, melhor, e muito, muito mais completo. 

Que a Eternidade, quando me chamar, me leve até lá! 

(Ou até si, porque onde você estiver, eu vou querer estar!)

Adoro-te Filho Lindo!

Mami



quinta-feira, 8 de setembro de 2022

8.9.2022 - One Day minus 36 ( "spicy" Wood)

 


Meu querido Tim,

Hoje vim ao seu encontro um pouco mais cedo: está um pôr-do-sol de cortar a respiração, e fui à garagem buscar mais um "cacalheiro", como diz o senhor Ramiro, para aproveitar para a nova quinta. Acabei dois, um que encontrei por lá, na Quinta do Miguel, e outro que o senhor Ramiro me ofereceu, que era feio como a noite. Daquela madeira horrível, anos setenta, escura como breu, mas que pintada e desgastada, depois com cera, fica linda numa cozinha. Com os frascos das especiarias, claro.

Ainda me lembro de você me ensinar a fazer um Guacamole como deve de ser. 

- "Batedeira?! Mãe, tá doida!? O Guacamole esmigalha-se com um garfo, para ficar um puré, não uma sopa!" 

- "Onde é que pôs a pimenta? E o sal? Não é essa Mãe, pelo amor de Deus, é a de Caiena, mas não a encarnada, é o frasco que tem a mistura das três cores."

Rendi-me à minha ignorância de Pantagruel, ou será de Gargântua? de trazer por casa, e deixei-o ensinar-me.

Mas já me estou a perder de novo, nas memórias, aquelas benditas recordações por onde navego nos últimos trinta e oito dias da minha nova condição. Estamos sempre a aprender - com quem tem a boa-vontade de nos ensinar - e hoje aprendi que existe um novo termo para a nossa condição. Somos "DESFILHADOS", (segundo o José Eduardo Rebelo), e eu gosto da expressão. Aliás, deveria fazer imediatamente parte do Priberam. 

Porque desfilhados é precisamente o que nos sentimos. Como as flores que são desfolhadas, ou seja, despojadas das suas pétalas, também nós somos evictos, mendigos, e de certa forma, procrastinados, porque causamos desconforto, perplexidade e compaixão. O que está profundamente errado, deveria ser: "com paixão". Mas pronto, a César o que é de César, e mais cartas para lhe escrever!

Mas como eu dizia, antes das especiarias me levarem para a meditação que é transformar a madeira, com a Foxie sempre como figurante de terceira classe clandestina, porque mais canídeo de primeira não há, fui pintar. Pus os iPods e deixei-me levar ao som de Bee Gees, "Staying Alive", afinal estou a transformar uma peça "vintage" e tenho que (sobre)viver. Enquanto o pincel afagava de branco o castanho, e das trevas fazia Luz, eu murmurei-lhe uma prece. Uma bênção (de Mãe), um sussurro (de cumplicidade), um murmúrio (de dor), um suspiro (de Paz). Momentânea, efémera, longínqua quimera do meu coração, omnipresente no meu quotidiano esmifrado, sofrido, dilacerado, e ao mesmo tempo grato por ter tido o privilégio de ter sido a sua...

"Mami!"


7.9.2022 - One Day minus...(In)Sanity




 Tim, ("Toi, tu auras des étoiles comme personne n'en a"!)

Mais um dia, mais uma alvorada, mais um ocaso. Mais vinte e quatro horas sem si. Umas suportáveis, outras menos, mas vamos em frente. Era isso que queria, certo? 

Pergunto-me muitas vezes, onde encontrar significado, onde lançar uma âncora de esperança, e não é fácil. Encontro-a nestas nossas cartas, nas perguntas que lhe escrevo, e nas respostas que ouço no âmago do meu coração. Estas nossas cartas...

...ÉPICAS!

Durante o dia estou distraída a lutar contra o bicho, aliás, os "dragões" da madeira: nunca vi buracos tão grandes como aqui; a controlar as obras, a afinar cores, a discutir roços. Mas quando a noite cai, cada vez mais cedo, e o silêncio se instala, é tramado. É nestas horas que ouço a sua voz e me tenho de deparar com o facto de que você é espírito. Ainda não me confrontei (totalmente), (ou se é que alguma vez o farei!) com essa realidade, porque para mim você vive: em mim, por mim, por todos. Sinto que está a dar uma mãozinha desse lado para este, mas é precisamente essa mão (física) que me falta. Não consigo pensar no futuro, porque não vai ser fácil. Sinto uma saudade IMENSA, indescritível e avassaladora, como se de um buraco negro se tratasse, que me engole e me devora. A vida dos outros continua, a nossa é um hiato suspenso na Eternidade.

Tento preparar-me psicologicamente para o que aí vem: os anos do Mano, os meus, os seus, o Natal, e não sei como irei encontrar forças para celebrar (?), ok, adective você, que eu não consigo, para sobreviver a isso tudo. O que sinto é que vivo entre dois planos, aquele em que a Vida continua, e aquele em que o NADA e o TUDO, o pleno e o vazio, coexistem, e eu não pertenço a nenhum deles. Sou uma ponte, apenas e "tão" isso... 

Tim...

Caramba Tim, isto não parece real. Eu acho que me defronto de caras com a sua morte, mas todas as minhas fibras sentem que está vivo, apenas vivendo noutro plano. 

Quão injusta pode ser a Vida? Leio, li e continuarei a ler muito sobre isso, a tentar manter um resquício de sanidade, mas não é fácil. Nada mesmo. Nós criamos defesas, barreiras, cinismos alimentados por uma racionalidade que nos move, mas sabemos que tudo isso são alicerces fracos perante a monstruosidade desta realidade surreal, que nos tira o chão e nos obriga a manter um equilíbrio frágil entre o "aqui" e o "aí".  

"Home" - Dotan, 7 layers... e você sabe do que estou a falar. 

Nunca precisámos de muitas palavras: sempre nos entendemos nos silêncios das nossas reticências, sem hífens e sem interrogações. Como nos compreendemos sempre nas nossas conversas únicas, profundas: as célebres exclamações, que nos obrigavam a trabalhos de casa, a perdões, a entendimento, a tudo o que sempre partilhámos. 

...Tim...

..."WE ARE COMING HOME"

...(e, para citar um eterno cliché: "Home is where your Heart is!")"

Mil beijos,

Mami




segunda-feira, 5 de setembro de 2022

5.9.2022 - One Day minus...Hope?

 



Meu querido Timzota,

Tenho novidades. E são boas. E você vai gostar de as ouvir. 

Muito poucos dias depois da sua morte, quando pela primeira vez consegui acordar do transe em que me encontrava, senti que deveria "reach out". Para onde ou para quem, não era importante, nem o continua a ser: eu sempre soube que a(s) pessoa(s) certas iriam aparecer no meu Caminho, obviamente que aqui colocadas por si. Você conhece-me melhor do que ninguém, e sabe bem que sempre acreditei no Universo. Nós somos os pedreiros que fazem a estrada, e os bailarinos ou as múmias que a trilham - por opção ou a dançar, ou arrastando os passos - mas quem desenha as curvas desse mesmo Caminho é o Universo. E sempre que estamos atentos, ele fala-nos.

Seja através de uma Libelinha que esvoaça sobre nós ao crepúsculo, seja através do som do correr da água, é só aprender a estar atento. Como você também estava. E eu senti que tinha forçosamente que largar, enviar para cima, para se reflectir em baixo. Porquês, Talvez, Ses, enfim, tudo aquilo que por vezes queremos preservar na nossa racionalidade, impedem-nos de sentir a nossa essência, aquele instinto que vive escondido por detrás do umbigo e que nos fala através das entranhas (agora vieram-me à cabeça os livros de Asterix :-)!). E eu senti que a melhor terapia para mim seria falar com outras Mães nas mesmas circunstâncias. Mas não pense que foi fácil, tantas tardes, noites e madrugadas a pesquisar na net, tantas pessoas a quem perguntei. 

Deram-me alguns nomes, umas conheço, outras não, mas eu sentia que não era a Mãe certa! Não me pergunte porquê - até porque continuo à procura de mais mães ou mesmo de um grupo de Mães e Pais - mas eu anotei os nomes que me iam dando e esperei, quieta e sossegada. Comecei por outras pontas, mas nenhuma delas me indicava o princípio, a entrada para este labirinto de emoções por onde vou ter de caminhar, mas que acredito irá ter uma saída, que trará um novo propósito à minha Vida. E como qualquer Minotauro com sorte, e graças a Deus, ao Universo, a Si, e ao Padre João, "essa" Mãe cruzou hoje o meu Caminho. E nessa encruzilhada, nesse cruzar de Vidas, nesse encontro pelo "Amor da Dor", eu dei um passo gigantesco. Eu hoje sinto algo de totalmente diferente depois de falar com essa Mãe. Se essa Mãe soubesse o BEM que me fez, pelo tempo que conversou comigo, e pelo que me disse, e pela gratidão que eu sinto, encontraria um propósito nesse seu Calvário. Porque SALVOU outra Mãe. E só isso é um consolo imenso, quem me dera um dia poder fazer por outra Mãe, o que esta fez por mim!

Eu consegui - até me faltam as palavras - nesta minha dor, encontrar de novo a Paz, o fio condutor que nos unirá para a Eternidade: a Paz do Amor. 

Aquele tormento que nos corrói a Alma e nos impede de tudo, foi-se embora. Não sei se por minutos, se por horas ou por dias, mas também não é importante.  O que sinto neste momento em mim, é leveza. É uma tristeza sem limites: sem fim, sem fronteiras, sem horizontes, mas é uma tristeza pacífica. É o apaziguar do coração. Senti pela primeira vez, desde dia dois de Agosto, que os músculos da face se distenderam. Os ossos relaxaram, as cartilagens soltaram-se, os nervos afrouxaram e a minha expressão suavizou. Tal como o meu coração. 

E por isso foi um dia BOM! 

Quando um Filho nosso sai do Mundo físico, aprendemos a encontrar átomos de Alegria em nanossegundos, mas que chegam para que, nem que seja uma vez, a Paz que se sente cá em baixo, seja espelhada (aí) em cima, e não o contrário!

Certo? 

Boa noite, meu adorado Filho! 

Mami


"Cold wind beneath our wings

Bracing out till we let it in

Don't we all fall

Don't we all fall

Chasing lights of the dying winds

Change will come if we don't begin"


5.9.2022 - One Day minus...Eternity!



Boa noite, meu adorado Tim,

Bom isto hoje promete uma carta sem fim, porque tenho mil coisas para lhe contar. Vamos lá a ver se organizo a minha cabeça, coitadinha, que anda um caos: esqueço-me de tudo, logo eu, com aquela memória de Elefante que tinha, e demoro longos minutos a raciocinar. 

A semana foi intensa: fomos ao cemitério no dia dos anos da Oma: o Pai, o Mano, a Oma e eu, colocar as suas cinzas. Não foi fácil, mas penso que foi importante. Não me apetecia nada, mas deixei lá a sua fotografia e o quadrinho com a sagrada Família, que a Concha e o António fizeram, quando o convidaram para padrinho. Tinha trazido esse quadro para por no seu altar aqui, mas algo me dizia que não estava certo. Levei-o de novo para Lisboa e agora sei que encontrou o lugar onde pertence.

Tudo ainda me parece irreal. Ou seja: a minha parte racional percebe isso, a minha parte emocional, a minha Alma e o meu coração não conseguem conceber (ainda?) esta não-presença física. Sabe, aquele abraço enorme, quente e aconchegante, o seu polegar na minha testa, o seu: "adoro-te Mami", tudo isso me faz falta. O seu cabelo lindo, com o remoinho à frente, onde, desde a sua infância, eu adorava passar os dedos, o seu cheirinho, o som da sua voz, tudo!

Mas voltemos ao relato. 

A missa foi uma beleza, o Padre João não pôde celebrar, mas o Padre João, amigo dele, veio e fez uma homilia linda, que me consolou por momentos. A Aninhas e o João leram a Oração dos Fiéis, que eu escrevi. Também foi a Aninhas quem organizou o coro, outra maravilha. Depois da missa, a sua segunda Família, aquela Trupe ÉPICA de miúdos de coração enorme, convidaram-nos para jantar. 

Tim, foi...nem tenho palavras para descrever como foi. Foi um bálsamo para a Alma e uma alegria para a Oma: quando chegámos, cantaram os parabéns e ofereceram-lhe um ramo lindo de flores. Ela coitadinha, estava sem palavras, entre a tristeza profunda, e a felicidade por sentir que, em cada um daqueles corações, bate um bocadinho do seu. O Pedro e o Filipe ficaram ao lado dela, e foi uma tática genial. Foi um jantar de recordações únicas, de passado, de presente, mas também de promessa de futuro, num hiato de tempo cristalizado no tempo, com memórias de tempos tão felizes! São Miúdos especiais! O Bernardo contou-me a história da pulseira e eu, bom, e eu tive de me esforçar para não desatar num pranto. Recordámos tanta coisa, de Barça, de jantares, de aventuras, foi...ÉPICO! 

Você teve a felicidade de inspirar duas famílias: aquela onde nasceu, e a que escolheu!

A Oma e eu conversámos até às cinco da manhã. Chorámos muito, mas foi como que uma catarse. Estava a precisar disso. No dia seguinte fomos ver o mar com o Dany e a Sofia, e soube-me tão bem aquela imensidão!

Depois regressei. 

Penso que entrei num novo estágio desde o dia dois de Setembro. Não sei bem explicar o que sinto, aliás, nem me consigo articular, tal é a imensidão desta dor, mas é um patamar diferente deste Luto. Muitas coisas me assolam o pensamento, coisas estranhas. Deparo-me com um monte de dúvidas, de incertezas, e, sobretudo, com a constatação impronunciável da sua morte física. Tenho de aceitar esse facto e questiono-me constantemente, nestes últimos dias, como é possível uma pessoa, aliás, "A" pessoa que conheci com a maior Alegria de Vida e ânsia de viver, já não estar neste Mundo que conhecemos. Como é possível? E como é que eu vou aprender a viver com isso? 

Tim...não tenho resposta!

O Zé fez um apanhado com vídeos e fotografias suas. Um filme que retrata a sua Vida de uma forma tão perfeita, mas tão perfeita, que me fez suster a respiração. Já o devo ter visto pelo menos, duzentas e vinte vezes. Com a música dos Dotan, que você me mostrou há um tempo, e que gosto tanto de ouvir. Já a tenho no Spotify. Ah, esquecia-me de lhe dizer, graças ao Pai, recuperámos as suas playlists todinhas. Tão bom! Até o Alexa Mood está cá!!! Não posso deixar de sorrir quando a ouço, sete minutos a recordar uma das nossas últimas conversas, e a imaginar outras tantas ;-)!

Tim...

...depois há o Legado, aquele espólio tramado, ensinamento herdado de si, que tem um peso tremendo, conquanto de uma leveza indescritível, aquela que se chama: AMOR! Acho que não existe um substantivo tão abrangente como o "AMOR". Ok, talvez haja um: VIDA. Mas o AMOR é maior, porque não se pode viver sem amor. É o Amor que cria e que sustenta a Vida, mesmo depois da morte. A morte é mortal perante a Vida, porque enquanto houver Amor, a Vida é IMORTAL!

Entretanto tentemos voltar ao racional: já marquei a psicóloga. Mal não faz, e talvez ajude a aprender como aceitar, com humildade e sobretudo com resignação, este desígnio. Como mulher de letras, não posso deixar de me surpreender perante uma característica comum aos idiomas que conheço. Já reparou que há um adjectivo para:

- Uma pessoa que tem de fazer o luto do seu marido ou da sua mulher? 

- "Viúvo".

- Uma pessoa que faz o luto dos pais?

- "Órfão".

- Então e quem é obrigado a sofrer o luto de um Filho ou de um Irmão? Nós somos o quê? Definimo-nos como? 

Como Sobreviventes de uma dor sem fim, que nos leva ao limiar da sanidade mental, obrigando-nos a um esforço sobre-humano para nos aguentarmos e nos redefinirmos perante o nihil? É isso? E como é que nos recriamos a partir do vazio? 

Só vejo uma forma: através do AMOR!

"MAIS AMOR POR FAVOR?"

Sempre! 

Adoro-te Filho LINDO!

Mami

P.S. Já tinha carregado no "publicar" (ou enviar para o Céu) esta carta, quando percebi que era a...

7! 

(em número, de propósito) :-)



quinta-feira, 1 de setembro de 2022

01.9.2022 - One Day minus 30..."AIN'T NOBODY!"

 




Meu adorado Filho,

Após a agonia que foi o dia de ontem, hoje foi um dia "feliz!".

Ontem o Pai e eu fomos desfazer o seu quarto, e arrumar as suas coisas. Aquele espaço tão querido e tão aprumado, que cheirava a si em cada centímetro quadrado. Tudo tão arranjado, onde cada peça de roupa, cada objecto, possui uma história, um antes, um durante e um depois. 

Foi um martírio. Foi como se você continuasse fisicamente cá. Foi uma dor incontrolável, incontornável e inultrapassável.

Mas conseguimos! 

Trouxe três casacos seus, alguns livros, e pouco mais. (Os ténis cinzentos ficam para outra conversa nossa)! Lavei a sua roupa de cama, mas o cheirinho que sai dos seus casacos, que pendurei no cabide cá de casa, o do primeiro andar, perdura, e é como se você cá continuasse, apenas se ausentando numa viagem. 

Foi com espanto e felicidade, que constatei a sua espiritualidade. Trouxe aquele seu livrinho do Evangelho, cujas passagens você me leu no Natal de dois mil e vinte um, quando a tristeza assolava esse seu coração imenso. Lembro-me dessa nossa conversa, como se a tivesse tido há poucos minutos. E o meu peito aperta-se e falta-me a respiração, nesta saudade imensa, neste vazio que você deixou e penso que poderia ter dito mais coisas, e ajudado esse seu enorme coração de uma forma muito mais eficaz. Mas não o fiz, porque tomamos a felicidade como garantida, até ela nos faltar.

Ainda me custa a acreditar, ou, por outro lado, começo a realizar que a sua não presença é, enquanto corpos físicos, algo que veio para durar. E o meu corpo físico chora-o com todas as fibras, com todos os átomos de que sou feita, com uma saudade que não tem dimensão, porque é eterna, ilimitada. e profundamente cruel.

E, contudo, o meu espírito sente-o. É um paradoxo incompreensível, indescritível e inexplicável. Não está fisicamente e tenho de (sobre)viver com e a isso, mas está. Eu sinto-o em mim, ao meu lado, à minha volta, num TODO e num TUDO, num turbilhão de emoções. Não é fácil largarmos, mas temos de o fazer, para que você tenha Paz. E nós também! Somos corpos Astrais e eu sinto o seu. Tenho lido sobre isso e há muita coisa que, cada vez mais, faz sentido. A minha maior preocupação é que você tenha subido, e esteja bem, e - sobretudo - em Paz. Eu penso que sim, e por isso mesmo, tento que a minha saudade seja o mais normal possível, se é que se pode falar de normalidade nesta dimensão de desgosto.

Hoje dancei a olhar para o céu. Senti-o tão próximo, caramba, como se fosse uma noite normal, como todas as noites dos últimos vinte e seis anos, oito meses e uns dias. Algumas melhores, outras menos boas, mas normais. 

Como se esta tragédia não tivesse acontecido. 

Mas ela é real. 

E eu tenho de encontrar uma forma de a entender. 

É complicado, e muito difícil de verbalizar. A miríade de sentimentos que me assola não tem descrição. Mas dediquei-lhe esta noite, a primeira em que consegui umas horas de verdadeira "normalidade". É muito estranho, e uma vez mais me repito, dificílimo de explicar: a ausência física é de uma atrocidade indescritível, mas ao mesmo tempo, percebemos que a Vida continua, num dia-a-dia que se vai construindo, de uma forma inexplicável, e você está "cá" a acompanhar essa construção.

A Vida terrena, sem as nossas partilhas, é estranha, bizarra e inaceitável. A Vida espiritual, com as nossas partilhas, começa a tornar-se uma realidade (ir?)real, (su?)real e (a?)normal. É uma questão de mudança de plano, primeiro estranha-se, depois entranha-se, literalmente falando, e nas minhas entranhas, você continua vivo, apenas de uma forma menos tangível. Mas não menos omnipresente.

Filho meu, meu Filho...não tenho palavras.

O Céu (não) pode esperar, e na sua impaciência, chama os Eleitos. E deixa-nos sem chão.

"The Space In-Between", mais uma música de uma playlist sua, que o Pai conseguiu salvar, e que ouço agora, enquanto lhe escrevo. É isso mesmo, um lugar espacial, sideral, astral, uma porta (entre)aberta, que separa os nossos dois Mundos. Dois? Hmmmm...não sei se chega. 

Eu diria que são muitos e, contudo, nenhum, porque não há Mundo que nos separe.

"If you leave me now (...)"...

Mami


25.4.2024 - One Day plus 266 - (Still about) the Intrepids, the Freedom Lovers, the Crazy Ones...

  Ahhh meu adorado Filho, Que DELÍCIA!  Está tão, mas tão perto de mim e obrigada pelos sinais que me vai enviando, hoje especialmente.  O &...