Meu adorado Filho,
São quatro e meia da manhã e não consigo dormir.
As imagens da nossa Vida sucedem-se numa cadência interminável. Tentei rezar, mas não me concentro nas palavras do terço, a minha mente voa para um passado (ainda) tão perto e, contudo, tão distante, para um tempo em que eu era feliz. Hoje senti e sinto de tal forma a sua falta, que nem escrever consigo, parece que tudo se afoga neste mar de dor, de tal forma, que nem as palavras me saem. Há dias assim, dias péssimos, dias em que nos sentimos como que presos num bloco de gelo. Estou a ver a imagem à frente dos olhos: é como se estivesse viva, mas presa num icebergue, rodeada de gelo, a ver o Mundo a passar e a mover-se perante os meus olhos, mas sem me conseguir libertar. Solidão e gelo. E lá fora estão os "Outros". Todos eles.
As pessoas que não passam por uma desgraça destas não conseguem entender a sua magnitude, o que é absolutamente normal, afinal requer uma coragem quase sobre-humana (sobre)vivermos a "isto". E "isto" é um deserto ártico. Não sei como e onde vou buscar forças, mas continuo a minha jornada, tal como lhe prometi. Aos poucos, neste Mundo paralelo que agora faz parte da minha vida, você e eu começamos a viver cada vez mais. Falo constantemente consigo, no meu coração, e sei que cá dentro, bem escondido do Mundo "normal", daquilo que os Humanos percepcionam, existe uma nova dimensão. E é nessa dimensão que gosto de estar. É aí que nos encontramos, que conversamos, que lhe conto o que me vai na Alma, que confesso os meus terrores e as minhas vivências. É também aí que partilho as nossas memórias.
O Miguel está com Covid, e eu presumo que também, muito embora continue a testar negativo, mas sinto um cansaço grande e dores de garganta. Aproveitei estes dias para me dedicar às madeiras. Começa a estar frio, pelo que trabalhar muitas horas a lixar no exterior, não é viável, ainda mais com o corpo dorido. Assim sendo, comecei a pintar e a decorar caixas de madeira. Aprendi uma nova técnica: a "découpage". Dá-me imenso gozo fazer isso, e o resultado fica engraçado. Vou fazer algumas lembranças para oferecer. A vantagem, é que posso trabalhar na mesa da cozinha, e não fazer o estardalhaço de pó e de porcaria que acontece quando lixo peças grandes. Também comecei a pintar letras de madeira. O resultado fica muito giro e decorativo. Passo horas do dia a fazer tudo isto, o que me descontrai, porque se assemelha a uma meditação.
Amanhã, ou hoje, porque é noite alta, o Miguel vai buscar as galinhas para as por na Quinta nova. Finalmente antevê-se um fim para as obras, faltando agora para mim o pior: a mudança. Quando olho para o que está na garagem e tem de ser organizado, limpo e arrumado, só me apetece vomitar, tal são os nervos que sinto, mas depois penso que, enquanto tiver tarefas destas, estou ocupada e dou uma espécie de sentido prático à minha vida. A minha cabeça continua um caos, esqueço-me de tudo, pareço que tenho Alzheimer. O mais difícil é o tempo que demoro a processar a informação, sobretudo quando me fazem perguntas. Vejo que as pessoas ficam à espera das minhas respostas, mas elas demoram. Para os que me conhecem, deve ser muito assustador. Deve não, é, porque reparo na surpresa do seu olhar quando me questionam sobre isto e aquilo, e eu não me consigo articular com a rapidez que seria "normal". Ainda não falei com outros pais em detalhe sobre esta situação, mas pelo que me apercebi, ela é comum.
Passaram quase dois meses desde o dia dois de Agosto. Parece uma Eternidade, tal a dimensão da saudade que sinto. Cinquenta e sete dias de agonia. O Verão deu lugar ao Outono, e eu mal me apercebi. Em breve, estaremos no Natal. E antes, serão os seus anos. Nem quero pensar no que vai ser. Prometi que irei fazer o Natal, a Oma também, coitadinha, lá vem ela de arrasto, mas vamos fazê-lo. É bom ser já na nova casa, será certamente menos doloroso, se é que se pode falar em mais ou menos, porque é tudo "pior que péssimo", mas pelo menos, numa casa nova não existem memórias. Talvez eu consiga criar recordações novas, depende. Não serão bem memórias novas, porque a minha vida perdeu um dos seus pilares, mas espero conseguir estabelecer uma vivência quotidiana que me permita seguir, tirando alguma gratidão dos dias. Aquela magia que sempre viveu dentro de mim, aquela gratidão por cada manhã em que abria os olhos, essa morreu com a sua partida deste Mundo físico. Tento não dar lugar ao cansaço, mas há dias em que faço um esforço hercúleo para me levantar da cama e seguir em frente. Entendo perfeitamente porque há pessoas que procuram o sobrenatural, e outras que se fecham num quarto escuro e preferem definhar, porque isto não é fácil.
Hoje quando fomos aos cães apanhei dúzias de Dióspiros. Estão maduros, tão maduros, que muitos caem da árvore. Aproveitei para pendurar um saco deles na porta da Dona Fernanda e outros tantos no portão do Manel. Quando me sentir com forças para voltar à cozinha, tenho de ver se descubro receitas para fazer com este fruto. Mas isso ainda vai demorar, porque a cozinha sempre foi um ponto de grande interação nossa. Lembro-me de quando me ensinou a fazer Ceviche. Do pormenor da cebola roxa, e dos temperos. Você picava cebolas como ninguém. Estou a vê-lo na nossa cozinha minúscula em Campo de Ourique, a cortar legumes e a mexer nos tachos e panelas enquanto bebia um copo de vinho tinto e conversávamos os dois sobre o ponto dos refogados, ou de como cortar o peixe ou os legumes. Lembro-me de me rir quando via como arrumava o frigorífico, tão parecido comigo na sua organização. Lembro-me de si todos os minutos do dia, nesse tal Mundo de que lhe falava há pouco, que agora é um Mundo num patamar diferente.
Eu sei que você me ouve e me entende, me aconchega e me acarinha, mas há momentos em que a falta física do seu abraço me dói como o raio. O tempo vai passar e eu não o vou ver a envelhecer, não vou assistir ao aparecimento dos seus primeiros cabelos brancos, nem das suas rugas. Não vou poder embalar os meus netos nascidos de si, vê-los a dar os primeiros passos rodeados de animais e natureza, nem lhes ensinar os princípios importantes da vida, neste futuro que me foi - literalmente -roubado. E isso DÓI Tim. É uma dor tão forte e tão violenta, de uma magnitude tão grande, que é como se me arrancassem o coração. Ou melhor, é pior, porque se me arrancassem o coração eu morreria, e agora tenho de viver com isto todos os dias até morrer.
É uma morte em vida. Quando morre um filho, perde-se uma parte de nós. É irrecuperável. Não existe consolo, nem fim, ou seja, o Luto por um filho é permanente. E essa permanência é algo inultrapassável, porque é um sofrimento que jamais acaba. É uma tortura. Espero que o Universo me dê forças para aceitar, não "talvez um dia", mas todos os dias. Agora, quando abro os olhos, já não digo:
- "Que bom, mais um dia que nasce!"
Mas sim:
- "O Universo me dê a força necessária para aceitar mais um dia!"
Ponho Amor em tudo o que faço. Tento que esse Amor que sinto por si, esse Amor universal, passe nos meus gestos, nas minhas atitudes, pois só o Amor tem poder para aliviar este sofrimento. E considero que o Amor tem vindo ao meu encontro. Estou mais próxima de algumas Tias suas, de quem tive muitas saudades, também dalguns primos, e de amigos e outras pessoas, e isso é muito bom. Isso é Amor.
Se houvesse mais Amor no Mundo, o Mundo seria melhor. Mas nós, os Humanos, só nos apercebemos disso, quando um dos Nossos é chamado. Existe um pouco de Nossa Senhora em cada Mãe De(s)filhada.
Que Ela me acolha debaixo seu manto de Luz nestas noites escuras de profundo desgosto.
Beijo enorme Filho lindo!
Mami
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