Escrevo estas linhas mentalmente, enquanto lavo a loiça - ah, sim, ainda não lhe comuniquei, em breve iremos ter máquina de lavar, e sei que você diria agora, naquela voz melodiosa e doce, e ao mesmo tempo tão irreverente:
- "Épico, Mãe!"
Mas quando as tento transpor para o teclado, elas afogam-se, tal como eu me afogo neste oceano de dor e de saudade. Elas brotam em catadupa do meu cérebro, as palavras que procuro - atabalhoadamente - articular nas minhas conversas consigo, mas perdem-se quando tento encontrar um fio condutor. Porque não o há.
Foi-se, tal como o meu Leitmotiv:
- "Tou, Mãe, eh pá Mãe, (seguia-se um palavrão que omito, para tentar preservar a sua memória imaculada) temos de falar!"
Ainda não apaguei o seu número dos meus favoritos, e angustia-me saber que agora que o Pai o cancelou, poderá ir parar a outra pessoa. Rezo a Deus que não, porque se algum dia me engano, vai dar barraca. Mas também não me ralo, as minhas conversas consigo, de dia dois de Agosto deste maldito ano da minha existência - sim, porque já não se pode chamar vida - para cá, são etéreas.
Etéreas, não efémeras, porque você é o INFINITO: o meu ontem, o meu hoje e, sem sombra de dúvida, o meu amanhã. Sei que só se transformou, já não é matéria, é Ar, é Vida, é o TUDO e é o TODO.
O seu Irmão implorou-me:
- "Escreva Mãe, por favor escreva!"
Aos cinquenta e cinco anos, decidi obedecer ao Anarca da Família. O Miúdo está aflito, tal como todos nós, mas não quer mostrar. Estamos apavorados, e não sabemos se estamos a enlouquecer, ou se estamos mais lúcidos do que nunca. Adoro o seu Irmão como o adoro a si, são as Luzes nas Trevas da minha existência.
Não consigo escrever, porque as imagens das nossas memórias se sucedem em tal rapidez vertiginosa, que mesmo que tentasse gravar a minha voz, acho que não conseguiria reproduzir, nem em 72 rotações, a velocidade da emoção que me corta o pio, enquanto desassossega, uma vez mais num batimento sem ritmo, o meu coração despedaçado.
Lembra-se do "Mais Amor por Favor?", daquela Barcelona tão nossa, tão sua e tão minha, daquela rara, única, ímpar e inédita cumplicidade umbilical, daqueles momentos só nossos, das Fiestas de Grácia, do melhor jantar da minha Vida, das compras no Mercadona, das viagens de moto?
Lembra-se do Pinóquio, do Ramiro, dos petiscos, do Sushi, do peixinho grelhado? E da primeira quarentena, em que você virava os Robalos no grelhador da nossa varanda minúscula, regados com Planalto ao almoço, e esfregávamos as mãos no frisson da antecipação de mais um episódio da Guerra dos Tronos?
E as manhãs? Oh meu Deus, essas eram épicas! Eu começava cedo cá em baixo, na mesa da sala, em reuniões, depois você vinha dar-me um beijo e subia as escadas de dois em dois, para mais uma sessão de ginásio @home! E depois fazia aquelas torradas deliciosas, com salmão, abacate e ovo estrelado em cima, que nos empaturravam até à uma da tarde, não sem antes tomar um daqueles intermináveis banhos em que eu berrava:
- "Olhe a conta do gás!"
Seguia-se o planeamento do menu da noite, sempre servido, naquela casinha de bonecas, em travessas de porcelana, recipientes de louça antiga, ora branca, ora de cor, copos de cristal e os talheres da sua bisavó, como se todos os dias de um jantar gourmet se tratasse.
Lembro- me de si desde que a enfermeira colocou um carimbo do seu pé minúsculo num postal com uma fotografia sua. Lembro-me de tudo: de cada minuto, de cada segundo, de cada átomo de tempo suspenso no Universo, aquele que agora me parece tão longínquo, e ao mesmo tempo tão perto.
Consegui safar uma das suas listas de reprodução do Spotify: "Eighties revisited by martim(...)"... que ouço agora enquanto lhe escrevo.
Vai ser uma carta longa. Interminável, e eterna, sem rumo e sem destino, como as nossas conversas que acabavam sempre com o célebre:
- "Ligo-lhe já Mãe, prometo, ligo-lhe já, tenho aqui outra chamada, mas já lhe ligo!", tal qual hífen suspenso no tempo sem tempo, naquele tempo tão (IN)temporal, em que se passavam horas até que você se lembrava das reticências da nossa conversa, interrompida por outra chamada.
Agora foi o seu Chamamento. Eu eu, bom, eu vou ter de esperar, não horas, mas dias, ou meses, ou anos, até àquele dia, que invariavelmente virá, mas que quando chegar, me irá encontrar com um sorriso rasgado, em que no meu último suspiro murmurarei:
- "O Céu (não) pode esperar!"
Vai ser uma carta para a Vida...para a Eternidade.
Uma carta...
"ÉPICA!"...
Como só você soube SER!
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