domingo, 29 de outubro de 2023

29.10.2023 - One Day plus 87 - Aqui do Campo...

 



Meu adorado Filho,


Como prometido, aqui estou, de novo, num Domingo não chuvoso, mas torrencial, literalmente "The Day After" à mudança da hora, aquela irracionalidade, cuja lógica a minha simples cabeça nunca conseguiu entender. O argumento das crianças de manhã no caminho para a escola já deveria estar em desuso, porque só um maluco deixaria os seus filhos à solta no trânsito caótico de cidades como Lisboa! Portanto, se queremos economizar, então porque não prolongar a luminosidade ao  (e escrevo "ao" e não "do" propositadamente) dia, para que as luzes se tenham que acender mais tarde? Juro que não abarco a ideia por detrás, muito embora acredite - piamente - que quando aflorar esse tópico com o seu Irmão, ele me vá dar uma teoria tão complexa, provavelmente ainda oriunda no "Bing Bang", de tal forma intrincada na dificuldade de compreensão da Física Quântica, que o que  fará "big-bang" é a minha cabeça, completamente em uníssono com essa bela Onomatopeia da língua inglesa!  

Agora começam os meses do ano em que o campo não é para fracos. Costumo dizer, desde que para aqui vim viver, que nesta parte de Portugal, temos nove meses de paraíso, e três de Inferno. Novembro e Dezembro são facto consumado, depois os corações oscilam entre Janeiro e Agosto. Ora como "Janeiro fora, cresce uma hora", e Agosto seja, por si só, um mês infernal na minha vida, eu defendo a teoria de que são Novembro, Dezembro e Agosto. Em Janeiro ainda está muito frio, mas os dias começam a ficar de novo maiores, primeiro lentamente, depois acelera, e em Fevereiro começa a sentir-se no ar a promessa da Primavera. Mas sentir o frio é algo de delicioso, porque damos vinte vezes mais valor ao quentinho da lareira, às camadas de camisolas que temos que vestir, verdadeiras cebolas saloias e ao ar que exalamos, num nevoeiro que se mistura na paisagem das conversas enquanto caminhamos. 

E é neste dia vinte nove de Outubro, que ouço Parcels, enquanto navego entre a costura e a escrita. As duas são cada vez mais indissociáveis, porque uma é tão relaxante, que num chapinhar calmo e introspectivo leva à outra, e dou por mim a falar consigo, enquanto coso uma baleia de tecido de corações e de bolinhas. É então que decido saltar para o computador, e escrever aquilo que o meu coração verbaliza. São tão bons estes nossos momentos, estamos tão juntos nestas conversas, que me sinto consolada, como que abraçada pelo Universo, num colo carinhoso e tranquilizador. Nestes momentos sou Cosmos, e neste Cosmos, somos Unos. É mesmo, mesmo, mesmo como se você estivesse aqui, apenas não fisicamente. Está de uma forma muito mais completa, porque me envolve, e é este seu Espírito que me traz a força e a vontade de continuar. Porque eu SEI que você está aqui, em cada átomo de mim, seja nas recordações de ínfimos pormenores, celebrados noutra Vida, seja no presente do meu aqui e agora, em que ouço a sua voz em mim, como se estivesse, de novo, fisicamente presente. Tenho aprendido tanto Martim, taaanto! É como se o saber universal me inundasse, por breves segundos, é algo de muito difícil de (d)escrever. 

A realidade brutal da morte de um filho, só ao fim de muitos meses é que começa a querer entrar, quando o nosso cérebro já se conseguiu refazer minimamente do choque inicial. Para mim isto é inegável! Inegável! É absolutamente necessário conseguir abarcar e "abraçar" essa ideia. E porque é que escrevo "abraçar"? Porque acima de tudo, é aceitar essa ideia sem revolta. E, obviamente, sem a "Dança dos SES", que não nos leva a absolutamente lado nenhum, e nos mantém presos, num limbo infernal, que nos consome as entranhas, acabando por nos matar. 

Aceitar é saber o que significa literalmente a palavra "Saudade". É decorar que continuamos a viver nas recordações revisitadas, é somar as lembranças dos momentos felizes, e multiplicá-las por enquanto formos vivos. E assim, passo a passo, hora a hora, e às vezes, minuto a minuto, vamos aprendendo a caminhar. Os pés já doem menos, porque felizmente já ligeiramente calejados, e quando olhamos para trás, e vemos o que conseguimos até agora, ficamos espantados com a força que temos. Bom, eu tenho ainda mais sorte, porque quando olho para trás, e também para a frente, e claro que o mesmo acontece para os lados, eu vejo-o a si. E portanto, sei que não caminho só. Caminho consigo, e consigo, nesse consentimento da sua presença espiritual, dar mais umas grandes passadas. E assim sigo. 

E no seguimento deste (pros)seguir, amanhã lá vou eu no "Comboio dos Operários" para Lisboa. E desta vez vou mesmo à campónia, de saco reciclável de supermercado cheio de pimentos, ovos, tangerinas e azeitonas, mais um frasco de Chutney de figo que está de gritos, porque o "temperei" com rodelas do nosso limoeiro, daqueles limões que cheiram a farinha Maizena de tão bons que são, e que apetece trincar, porque o perfume a bolacha Maria é de levar uma pessoa às lágrimas. Ficou um Chutney estranhamente ácido, porque o doce do figo, na fusão com o ácido do limão, e a surpresa do picante aromático das especiarias brilha duplamente, e esta fusão deliciosa está de tal modo desconcertante, que baralha completamente as papilas gustativas, deixando-as às cambalhotas no palato. Então se o juntarmos em cima de uma tosta tapada com uma fatia de queijo queimoso...bom, então Filho, então é o céu. Com minúscula, claro, mas não o deixa de o ser.

E amanhã começa uma nova semana, de um fim de semana semelhante ao dilúvio, como já lhe disse, mas também de mais um passo para a normalidade. E foi um fim-de-semana divertido, em que fizemos uma "soirée" não dançante, mas "jogante", onde nos reunimos de novo, os duros do costume, para um serão de póquer. Finalmente tenho uma mulher parceira de jogo, o que me encanta, pois deixei de ser a única representante das copas e dos outros femininos, e ganhei uma companheira destemida para enfrentar os paus e as espadas dos adversários. Jogar póquer no campo, enquanto mulher, não é algo muito comum. Por isso estou contente por agora sermos duas! São sempre noites divertidas, de tertúlia e de amena cavaqueira, sentados à lareira na época do frio. 

É a simplicidade da vida revisitada.

Um beijo gigante aqui do campo, 

da sua Mãe que o adora,

Mami!



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